Memórias de um ex-desempregado

[E]star desem­pre­ga­do é uma condição que, infe­liz­mente, afec­ta muitos por­tugue­ses hoje em dia. Muito se fala de desem­prego nas notí­cias, mas muito poucos sabem o que isso sig­nifi­ca real­mente para a saúde men­tal e físi­ca de uma pes­soa. Estar desem­pre­ga­do é um ver­dadeiro teste de resistên­cia pes­soal à frus­tração e tédio.

Fala-se tam­bém muito de desem­prego jovem, mas acho que pos­so afir­mar com algu­ma certeza que são as pes­soas que já tiver­am algum emprego e inde­pendên­cia que são as mais afec­tadas psicologicamente.

Eu tin­ha um emprego estáv­el e agradáv­el até tomar uma decisão que iria mudar tudo. Tra­bal­ha­va em Lis­boa há 6 anos, mas des­de sem­pre quis um emprego na min­ha cidade Natal, Coim­bra. Nun­ca me con­segui adap­tar ao reboliço desmesura­do da cap­i­tal, ape­sar de estar rodea­do de pes­soas de quem gosta­va, tan­to a nív­el pes­soal como profis­sion­al. O meu prob­le­ma com Lis­boa nun­ca foram as pessoas.

Inclu­sive, o meu con­tra­to de tra­bal­ho era já sem ter­mo (ou, como mui­ta gente diz, já esta­va efec­ti­vo na empre­sa onde trabalhava).

Apare­ceu entre­tan­to uma pro­pos­ta de emprego na min­ha área de espe­cial­i­dade da Infor­máti­ca, Admin­is­tração de Sis­temas. Con­cor­ri. Fui selec­ciona­do para uma entre­vista. Depois de pas­sar por todas as fas­es de recru­ta­men­to, foi agen­da­da uma con­ver­sa tele­fóni­ca com o CEO dessa empre­sa. Após essa con­ver­sa, que, ten­ho que admi­tir, foi inter­es­sante e enco­ra­jado­ra, foram-me prometi­dos “mun­dos e fun­dos”. Nun­ca mais me esque­cerei de uma frase que me foi dita: “Não vamos des­pedir alguém que seja bom profis­sion­al”. E, mod­és­tia à parte, con­sidero-me um bom profis­sion­al, e isso foi-me con­fir­ma­do, por muitas vezes, por pes­soas que me rodeavam e pelas min­has avaliações.

Pas­sa­dos três meses des­ta nova exper­iên­cia, na min­ha cidade por­tugue­sa preferi­da, depois de uma reunião do con­sel­ho de admin­is­tração da empre­sa, foi-me comu­ni­ca­do que iria ser feito um corte no pes­soal. Eu, por lei, era uma das víti­mas. Apre­sen­taram-me, no entan­to, uma “solução” para não ter que me des­pedir a meio do con­tra­to. Seria trans­feri­do, em out­sourc­ing, para uma uma out­ra empre­sa do mes­mo grupo.

Con­fes­so que gostei da exper­iên­cia. Fui colo­ca­do num pro­jec­to que me levaria a Moçam­bique, um país de que tan­to, por razões várias, ouvi falar. Con­heci mui­ta gente nova, algu­mas com mais importân­cia na min­ha vida que out­ras, out­ro povo, out­ro con­ti­nente, out­ra real­i­dade. (Pos­so-me con­sid­er­ar sor­tu­do por já pisei o solo de todos os con­ti­nentes, excep­to Antárc­ti­da, se con­sid­er­ar­mos a Repúbli­ca Domini­cana como a América.)

Este pro­jec­to teve a duração dos três meses que me restavam de con­tra­to, um mês e meio pas­sa­do em Moçam­bique e out­ros dois cá (entre­tan­to tin­ham pas­sa­do duas sem­anas des­de a comu­ni­cação que teria que viajar).

Nas últi­mas sem­anas do pro­jec­to, nem a empre­sa com quem tin­ha con­tra­to, nem a que me tin­ha acol­hi­do tin­ham pro­jec­tos para o meu per­fil profis­sion­al. No entan­to, uma das pes­soas com quem tra­bal­hei der­am-me esper­ança que seria chama­do em breve para um novo pro­jec­to, nos mes­mos moldes que este, mas que teria que esper­ar algum tem­po (um a dois meses). Não fiquei muito pre­ocu­pa­do, tan­to mais que iria con­sid­er­ar este perío­do como férias, dado que ain­da não tin­ha tido nen­hu­mas nesse ano.

Pas­sa­dos dois meses ingres­sei então nesse novo pro­jec­to. Nova desilusão: o con­tra­to que me fiz­er­am assi­nar era como presta­dor de serviços (o chama­do “reci­bo verde”). Seria pago em prestações (o tão con­heci­do “fal­so reci­bo verde”), em que as prestações servem ape­nas para mas­carar o paga­men­to de um salário.

A coisa até cor­reu bem até ter acaba­do esse pro­jec­to. Foram-me colo­can­do em pro­jec­tos menores, só para preencher o tem­po, até que, um mês antes de ter­mi­nar o con­tra­to, nova­mente, me comu­nicaram que não o iri­am ren­o­var. Mais um mês de stress, ocu­pa­do a procu­rar out­ro emprego.

No meio dis­to tudo, até se pode diz­er que tive sorte, pois con­segui emprego numa out­ra empre­sa de Coim­bra, emb­o­ra de bas­tante menor dimen­são. O salário foi uma com­ple­ta desilusão. Sen­ti-me com­ple­ta­mente humil­ha­do, pois já havia tra­bal­ha­do mais de 7 anos e voltei ao nív­el salar­i­al de um estag­iário. Além de mais, mais uma vez, fui na con­ver­sa que seria aumen­ta­do pas­sa­dos dois ou três meses, “caso a coisa cor­resse bem”. Pos­so diz­er que, sem dúvi­da abso­lu­ta­mente nen­hu­ma, esta foi a pior exper­iên­cia de tra­bal­ho que algu­ma vez tive. O patrão trata­va mal os colab­o­radores, pou­cas vezes apare­cia no local de tra­bal­ho, com­bi­na­va coisas que caíam em saco roto, etc. Nun­ca vi uma empre­sa tão mal geri­da como esta. Depois de ver esta, não me admiro que as peque­nas empre­sas este­jam em tan­tas difi­cul­dades, com os patrões a olharem tan­to para os seus botões.

Pas­sa­dos qua­tro meses, dis­ser­am-me que “as coisas não estavam a cor­rer bem”. Quan­do per­gun­tei por quê e o que poderíamos faz­er para as mel­ho­rar, ape­nas me respon­der­am com um encol­her de ombros. Na pressão do momen­to, apre­sen­taram-me uma pro­pos­ta para rescindir o con­tra­to que me daria a hipótese de usufruir de sub­sí­dio de desem­prego, mas ape­nas daí a dois meses, fican­do dois meses sem rece­ber salário (uma espé­cie muito mal expli­ca­da de lay-off). Ain­da colo­quei a hipótese de me des­pedi­rem “como deve ser”, extin­guin­do o meu pos­to de tra­bal­ho. A isto respon­der­am-me que não o podi­am faz­er pois que­ri­am con­tratar out­ra pes­soa e este des­ped­i­men­to impe­di-los-ia de con­tratar mais pes­soas pelo pra­zo de dois meses.

Quan­do me aperce­bi, o que tin­ha assi­na­do era um acor­do mútuo de rescisão que, caso eles não quisessem cumprir o acor­do ver­bal que tin­ham feito comi­go, teri­am tudo o que era necessário para me “man­dar às urtigas”. Como o Códi­go do Tra­bal­ho per­mite ao tra­bal­hador mudar de opinião e anu­lar o acor­do até cin­co dias úteis após a sua assi­natu­ra, assim o fiz. Entre­tan­to, como nun­ca me resignei e con­tin­uei a enviar can­di­dat­uras a out­ros empre­gos, fui chama­do para uma entre­vista em Lis­boa, para um lugar como Admin­istrador de Sis­temas numa unidade de saúde pri­va­da que iria abrir nos próx­i­mos meses, tam­bém em Coim­bra (até ago­ra não ten­ho con­hec­i­men­to que ten­ha aberto).

Depois da anu­lação do mútuo acor­do ter sido efec­ti­va­da, fui chama­do nova­mente para o tra­bal­ho. Aqui as coisas mudaram de mau para pés­si­mo. Fui acu­sa­do de fal­tar à min­ha palavra, de ser uma cri­ança por mudar de ideias tão rap­i­da­mente. Foi-me dito que “se esta­va com dúvi­das, que dissesse”. Aqui fiquei par­vo, pois sem­pre me mostrei duvi­doso com a “solução” que tin­ham arran­ja­do. Que esta­va a faz­er isto tudo por causa de uns míseros 2 mil euros… Pen­sei para mim que, se dois mil euros não lhe fazi­am fal­ta, a mim fazi­am-me uma fal­ta imen­sa. Depois a coisa descam­bou… Foi-me dado tra­bal­ho só para ocu­par tem­po. Reti­raram-me o portátil que me tin­ha sido atribuí­do, que entre­tan­to tin­ha entregue. Ficaram chatea­d­os por ter entregue o portátil limpo (nem sis­tema oper­a­ti­vo deix­ei) como habit­ual­mente ten­ho feito sem­pre que entrego equipa­men­to que me é cedi­do para tra­bal­har (e nun­ca me dis­ser­am nada acer­ca dis­so), pelo que me obri­garam a instalá-lo out­ra vez. Assim que foi dado a out­ro cole­ga, esse out­ro cole­ga tra­tou de o limpar out­ra vez para insta­lar novo sis­tema oper­a­ti­vo. Se já sabi­am que isso iria acon­te­cer, por que se chatear­am comi­go em primeiro lugar?!

Resu­min­do e con­cluín­do, foram dois meses pas­sa­dos prati­ca­mente a “olhar para o ar”, não fos­sem alguns pro­jec­tos pes­soais que me iam ocu­pan­do o tempo.

Depois veio o perío­do mais difí­cil dos últi­mos dois anos. Desem­prego “cru e duro”. Sei que, ape­sar de tudo, não me pos­so queixar muito, pois o sub­sí­dio que iria auferir era muito supe­ri­or ao da maio­r­ia das pes­soas na min­ha situ­ação (quase o máx­i­mo per­mi­ti­do por lei). Mes­mo assim, tive que, humil­hante­mente, recor­rer à aju­da dos meus pais (nun­ca pen­sei que tal viria a acon­te­cer, pois já havia con­quis­ta­do a min­ha inde­pendên­cia pes­soal e finan­ceira deles), a muito cus­to tam­bém para eles. Feliz­mente não chegou ao pon­to de ter que aban­donar a min­ha casa para ir viv­er nova­mente com eles, mas ficou perto.

Se me sen­ti humil­ha­do por ter que aceitar a aju­da deles, nem quero imag­i­nar a humil­hação que é para uma pes­soa ter que o fazer.

Os meus dias pas­saram a ser extrema­mente ente­di­antes. Dormia quase até à hora de almoço, lev­an­ta­va-me, trata­va da higiene pes­soal, a cola­va-me ao com­puta­dor para ler as mail­ing lists de emprego. Quan­do encon­tra­va uma que se enquadrasse no meu per­fil, respon­dia, sem­pre esperan­do por uma opor­tu­nidade para entre­vista. Entre­vis­tas essas que rareavam. À tarde, hora das redes soci­ais, em que pas­sa­va horas a olhar para os meus per­fis do Face­book, Twit­ter, LinkedIn, etc. À noite, ver tele­visão, num zap­ping quase con­stante para encon­trar pro­gra­mação interessante.

No primeiro mês, a coisa foi lev­a­da como se fos­sem férias, que, aliás, nem tin­ha tido em quase dois anos, dev­i­do às con­stantes mudanças de emprego. O segun­do mês, ain­da foram mais ou menos con­sid­er­adas como férias pro­lon­gadas. A par­tir do ter­ceiro mês, o deses­pero  começa­va a insta­lar-se.  Ape­sar de ter esta­do qua­tro meses desem­pre­ga­do, a par­tir de mea­d­os do ter­ceiro, os inúmeros cur­rícu­los que enviei começaram a ter respos­ta, fos­se por tele­fone, e‑mail ou out­ros. Desisti de procu­rar emprego em Coim­bra. Voltei-me nova­mente para Lis­boa, pois a maior parte das pro­postas que rece­bia eram para lá.

Estar desem­pre­ga­do tem algu­mas van­ta­gens, nomeada­mente, a pos­si­bil­i­dade de poder tratar de assun­tos pes­soais sem ter que prestar con­tas a ninguém, mas, mes­mo assim, não o recomen­do a ninguém.

As pou­cas entre­vis­tas de emprego a que fui ain­da não tiver­am respos­ta, excep­to uma que foi sur­preen­den­te­mente ráp­i­da. Talvez nem tan­to, pois trata­va-se da empre­sa onde tra­bal­ha­va em Lis­boa, antes da min­ha “aven­tu­ra” em Coim­bra. Con­fes­so que, de todas as empre­sas por onde pas­sei, foi esta a úni­ca que nun­ca me fal­tou à palavra e que me tra­tou mel­hor, em todos os aspec­tos, pes­soais e profissionais.

É frus­trante ter que vir gas­tar tem­po e din­heiro (uma viagem de Coim­bra a Lis­boa nun­ca fica por menos de 50 euros, quer seja por com­boio, seja de car­ro) e ouvir diz­er que “ain­da temos que procu­rar uma vaga de emprego que se ade­qúe ao seu per­fil”. Per­gun­to eu: então se não têm já uma pro­pos­ta para me faz­er, para quê me entre­vis­tar?! Só para que o pes­soal de Recur­sos Humanos das empre­sas apre­sen­tem tra­bal­ho? Então para quê colo­car a pro­pos­ta em pági­nas ded­i­cadas à procu­ra de emprego? Para quê perder tem­po a con­tac­tar as pes­soas se ain­da não têm a certeza onde as poderão colo­car? Há algo de erra­do nas metodolo­gias de con­tratação destas empre­sas, com certeza.

Mais deses­per­ante que o tédio do dia-a-dia, é ter que estar sem­pre com a cal­cu­lado­ra ao lado do com­puta­dor com a pági­na do home bank­ing aber­ta, sem­pre à espera que a con­ta bancária ven­ha aci­ma da lin­ha de água. Mais deses­per­ante que o tédio do dia-a-dia é a espec­ta­ti­va de ser con­tac­ta­do para uma entre­vista de emprego que, após duas ou três, se sabe que não dará em nada. E isto por razões várias. Mais deses­per­ante que o tédio do dia-a-dia é ouvir diz­er que “o seu cur­rícu­lo é muito bom” e não rece­ber pro­postas de com­pen­sação mon­etária (o tradi­cional salário) con­dizente com o cur­rícu­lo em questão.

Pos­so diz­er que cheguei a ir a entre­vis­tas em que me ofer­e­ce­r­am um salário menor que o lim­ite infe­ri­or ao qual o IEFP obri­ga a que se aceite emprego (neste momen­to, uma pes­soa inscri­ta no Cen­tro de Emprego é obri­ga­da a aceitar um salário bru­to que seja até 10% supe­ri­or ao Sub­sí­dio de Desem­prego). Cheguei mes­mo a ser chama­do para uma entre­vista des­ti­na­da a ocu­par uma vaga num pro­gra­ma do Gov­er­no, chama­do Con­tra­to de Emprego-Inserção, que, na práti­ca não é nada, excep­to uma ocu­pação. Legal­mente a pes­soa fica na mes­ma a rece­ber sub­sí­dio de desem­prego e a con­tar para as estatís­ti­cas, emb­o­ra rece­ba uma “bol­sa” equiv­a­lente a uma per­cent­agem do Index­ante de Apoios Soci­ais, sub­sí­dio de ali­men­tação e de trans­porte. Acho que nem pre­ciso de diz­er que devem ter acha­do o meu cur­rícu­lo “bom demais” para ocu­par essa vaga, pois vi essa opor­tu­nidade negada.

Acabei por vir tra­bal­har para a empre­sa que ocu­pa­va antes de ir para Coim­bra. Fiquei colo­ca­do num cliente difer­ente, mas o que inter­es­sa é que deix­ei de con­tar para as estatís­ti­cas do desem­prego. Cal­cu­lo que, mais uns meses e tornar-se-ia difí­cil para uma pes­soa na min­ha área e da min­ha idade arran­jar algu­ma coisa que me pudesse dar um nív­el de vida pare­ci­do com o que tin­ha anteriormente.

Estar desem­pre­ga­do não é para todos nem é vivi­do da mes­ma for­ma por todas as pes­soas. Deixo um con­sel­ho a quem está desem­pre­ga­do: não deses­perem. O deses­pero é a pior coisa  nes­ta situ­ação. A per­sistên­cia sem­pre com­pen­sará, ou, pelo menos, é o que a min­ha mente opti­mista me leva a pensar.

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