A seguir reproduzo um texto que li no Facebook, que fala sobre o estado da democracia em Portugal, sistemas eleitorais, o nosso e como o melhorar. Algo longo, mas muito esclarecedor. Consegue ainda justificar o por quê de serem sempre as mesmas caras na nossa política, desde há muitos anos para cá.
Há vários anos que penso intensamente no que há de errado com a política e governação de Portugal. Cheguei a uma conclusão clara: a raiz do problema está no sistema eleitoral.
É assim porque ao contrário do que se verifica em qualquer democracia genuína, o sistema eleitoral português não confere qualquer poder de escrutínio sobre os políticos. Portugal é quase o único País europeu cujo sistema eleitoral não permite aos eleitores escolherem o candidato em que querem votar para os representar no parlamento. Isso tem consequências gravíssimas em termos de desempenho económico, renovação interna dos partidos e corrupção.
A maioria dos portugueses julga que “Portugal é uma democracia”, talvez porque os portugueses “têm o voto”. Mas quase ninguém olha para o que o nosso voto decide: QUASE NADA. Em Portugal, as verdadeiras “eleições”, já tiveram lugar semanas antes, quando os partidos fizeram as suas listas. É por isso que os partidos querem sempre muito tempo para as preparar, mesmo em estado de emergência nacional. É porque são essas listas que decidem quase tudo. Em particular, podem garantir um lugar no parlamento, mesmo quando o partido tem uma grande derrota nas eleições.
Os portugueses estão reduzidos a “votar” em listas cuja ordem já foi decidida… pelos próprios políticos! Este tipo de “voto” colide com alguns princípios fundamentais da democracia. Quando a ordem dos candidatos nas listas dos partidos não depende das escolhas dos eleitores, tem de depender de alguma outra coisa — e qualquer que seja essa outra coisa, já não é democracia.
O que falta aos portugueses é o VOTO NOMINAL. Este voto diz-se “nominal” porque o eleitor encontra NOMES no boletim de voto. Não são precisos círculos uninominais para haver voto nominal. Os círculos uninominais são assim chamados porque o círculo só elege um nome, uma pessoa. As eleições para a presidência da república portuguesa são as únicas eleições em Portugal com voto nominal — mas para um cargo não-executivo e não-legislativo. Por acaso, são uninominais: o “círculo” (toda a Nação) elege apenas um dos candidatos.
Os políticos portugueses gostam de se referir ao nosso sistema partidocrático como “sistema representativo”. É um LOGRO, pois de representativo, este sistema não tem nada. Para que o sistema merecesse ser apelidado de “representativo”, seria essencial que houvesse uma relação directa entre as preferências dos eleitores e a ida de determinado candidato para o parlamento. Um “representante” só o é, se for ESCOLHIDO pelos representados, PREFERIDO entre várias escolhas. Se nós não podemos escolher o membro da lista que queremos para deputado, esse alguém NÃO nos representa. Seguramente que os deputados portugueses representam alguém… mas não é quem vota.
O verdadeiro nome do nosso sistema eleitoral é “sistema proporcional de listas fechadas”, querendo “fechadas” (ou bloqueadas) dizer que a ordem das listas é IMPOSTA pelo partidos em vez de ser determinada pelos eleitores. Na Europa além de Portugal, já são poucos os países que o usam. Facto curioso: incluem a Albânia, Ucrânia e Rússia… É com esses Países que nos queremos comparar em termos de democracia?
(Fonte: Wikipedia “closed list”)
As eleições legislativas portuguesas têm VENCEDORES ANTECIPADOS. São os candidatos em “lugares elegíveis”: lugares que dão ao candidato a GARANTIA de que vai ser deputado, duma maneira que nada tem a ver com as preferências do eleitorado. Isto pode ser comprovado pesquisando a expressão “lugares elegíveis” na Internet. Se usarmos o Google, basta ler as “gordas” das primeiras páginas, respeitantes a páginas/notícias de jornais feitas ao longo dos anos. No meio das ocorrências encontradas, encontramos:
- “Lugares elegíveis devem ser reservados a mulheres”
- “Helena Roseta quer dois lugares elegíveis na lista de António Costa …”
- “Os candidatos do PS em lugares elegíveis — Política — PUBLICO.PT”
- “Três vimaranenses do PSD em lugares elegíveis às legislativas, mas (..)”
- “Isabel Castro sai de lugar elegível — JN”
- “Juventude Socialista espera ter oito deputados em lugares elegíveis”
Em suma, assume-se como pressuposto que há lugares no parlamento que estão RESERVADOS e que quem quer ser deputado, não deve pedir votos aos eleitores, mas aos caciques dos principais partidos, quando estes elaboram as listas.
Convido todos a perguntarem-se se esta prática é compatível com o princípio de que “em eleições democráticas, não há vencedores antecipados”. Esta exacta frase, ouvi‑a ser proferida por Manuel Alegre, na qualidade de candidato presidencial. Também ouvi José Sócrates proferir uma frase parecida nas eleições legislativas de 2011. Claro, esses políticos não se referiam aos “lugares elegíveis”, mas o princípio que citavam aplica-se-lhes também. Cada vez que os políticos portugueses fazem referência a esse princípio, estão implicitamente (e inadvertidamente) a afirmar que Portugal não é democrático — ou pelo menos, não o é inteiramente.
Com este sistema eleitoral, não é possível negar o voto aos políticos, pois os nomes deles não aparecem nos boletins de voto. Alguns países atenuaram esta falta de representatividade com a realização de primárias (cf. Wikipedia “closed list”), para envolver os cidadãos na elaboração das listas. Em Portugal, nunca se realizaram primárias. Quando António José Seguro assumiu a liderança do PS, propôs que o PS passasse a realizar primárias. Depressa os militantes mataram essa ideia.
Uma maneira de instituir o direito de negar o voto aos políticos seria tratar os votos brancos como um partido político para efeitos de atribuição de lugares. Porém, no sistema português os votos brancos não entram nas contagens. Além disso, a imposição da (actual) constituição de que o número de deputados seja de pelo menos 180 colide com uma tal medida.
Também não é possível negar o voto aos partidos, pois o parlamento enche-se sempre com 230 deputados, não importa quantos votem. Usando um determinado conjunto de listas eleitorais, duas eleições — uma com 99% do eleitorado e outra com 1% — podem resultar em EXACTAMENTE o mesmo elenco parlamentar.O “voto” dos portugueses só permite calibrar (a fino) a distribuição relativa dos 230 deputados.
Uma maneira de sustentar o direito de se negar o voto aos partidos seria permitir a candidatura de listas de cidadãos independentes dos partidos. Porém, essa via também não é permitida aos portugueses.
Um voto em listas cuja ordem já foi decidida não elege nem escrutina.
Os processos eleitorais com este regime já duram há décadas. Os partidos tiveram tempo para se organizar no sentido de explorar ao máximo o poder, imunidade e impunidade que o sistema lhes confere. Não é pois de admirar que haja tanta corrupção em Portugal: este sistema eleitoral parece perfeito para propiciá-la. Há corrupção porque os lóbis têm mais poder do que os eleitores — sobretudo no parlamento, a casa da partidocracia.
Convém compreender que, quanto mais fraca é a influência do eleitorado sobre os deputados e governantes, mais forte é a influência de outras “forças”. Nunca há vazios de poder. Como o nosso sistema eleitoral neutraliza toda a capacidade de escrutínio que o voto democrático poderia (e deveria) ter, os grupos de interesse tiveram o caminho aberto para o capturar o parlamento. O eleitorado é impedido de exercer a sua função de contrapeso à influência dos lóbis no parlamento, de modo que é fácil para os lóbis manter ligações ocultas com deputados. Estes perpetuam-se no parlamento, numa situação estável e blindada contra as preferências dos eleitores.
Sem voto nominal, são os grupos de interesse que são representados no parlamento, não os eleitores.
Assim, os partidos transformaram-se em máquinas de sugar recursos da sociedade e da economia (antes eu dizia que eram máquinas de distribuir empregos; porém, fui-me apercebendo de que a realidade é ainda mais sistemática e alarmante, graças às denúncia de entidades como Medina Carreira, José Gomes Ferreira, Paulo de Morais, o Movimento Revolução Branca e outros). O parlamento possui um poder quase absoluto sobre os portugueses. Após capturarem o parlamento, os partidos “de poder” capturaram todas as instituições independentes e desorganizaram as restantes no sentido de as tornar ineficazes enquanto agentes de escrutínio (sistema de justiça) ou até de ideias (sistema educativo).
Como funciona a renovação interna dos partidos?
Costuma dizer-se, a respeito do regime de partidos de Portugal, que “o sistema não é reformável por dentro”. Claro que não é! Este tipo de sistemas NUNCA é reformável por dentro. A renovação dos partidos é SEMPRE dirigida por pressões externas. Nos regimes democráticos, essas pressões são os votos em eleições, que transmitem aos partidos os sinais sobre os políticos que merecem progredir (porque têm votos) e os políticos que devem sair de cena (porque ninguém vota neles). Mas para isso funcionar, os votos têm de ser em nomes, i.e. NOMINAIS! A ausência de voto nominal abafa os sinais que o eleitorado português tem para enviar aos partidos. A ausência de voto nominal impede o eleitorado português de desempenhar o seu papel na renovação interna dos partidos.
Graças à blindagem contra o escrutínio, perpetuam-se os caciques partidários. Apenas os que têm a sua anuência sobem nas estruturas dos partidos. Como já decorreu muito tempo desde que o actual sistema foi instituído, o pessoal que domina os aparelhos já é o da segunda geração. São os chamados “jotinhas”: pessoas que ingressaram nos partidos quando eram novas demais para terem cursos superiores ou experiência profissional. Viveram desde sempre alimentadas pela partidocracia. Não têm currículo profissional e nunca trabalharam desprotegidas. Viveram sempre das “rendas” que a partidocracia lhes dava. Isto explica porque razão o sistema não é estável: num País com um sistema destes, a situação nunca parará de se degradar. Mesmo com a primeira geração, ainda munida de muita gente competente, experiente e honrada, Portugal entrou na bancarrota por duas vezes — a actual bancarrota é a terceira (!) desde o 25/Abril. É previsível que com a “geração jotinha”, o desempenho de Portugal seja ainda pior.
É impossível resolver o problema de Portugal sem introduzir o voto nominal no sistema eleitoral. O caminho que proponho é instituir a eleição nominal dos deputados. Enquanto isto não acontecer, os portugueses serão governados por políticos que detestam, que não querem em cargos de poder, mas cuja “eleições” não podem travar.
Que modernização do sistema eleitoral português deve ser proposta?
Idealmente, qualquer novo sistema eleitoral deve:
1) dar o direito de se negar o voto, quer a partidos, quer a políticos individuais.
2) Deve estabelecer uma relação directa entre os votos e TODOS os lugares de deputados (sem coutadas reservadas, nomeadamente na forma dum circulo nacional com listas “fechadas” — a existir, um tal círculo nacional deve ser uma listas aberta — à ordenação pelos votos).
3) Deve ser simples (para favorecer a fácil compreensão do povo português e evitar a eternização de negociações entre bancadas).
Mas não chega um sistema eleitoral ser “bom”. É preciso tenha características tais que neutralize os argumentos que os partidocratas do actual regime vão garantidamente “construir” para matar a proposta.
Assim, a reforma eleitoral a propor deve também:
a) Evitar prejudicar uns partidos em relação a outros, pois qualquer proposta que o faça angaria imediatamente esses partidos contra a causa. Basta ver o que acontece com a mera diminuição do número de deputados: os “grandes” não se importam, os “pequenos” são claramente contra. O processo fica logo envenenado.
b) Evitar dar margem para (bons) argumentos para ser rejeitada. Logo, deve procurar ser o mais moderada e pacífica que possível.
c) Não ser vulnerável a acusações de ser “uma aventura”. Isto aponta para a exclusão de propostas “experimentalistas”, tipo “democracia directa”, ou de novos sistemas “inventados”. Pelos mesmos motivos, também se deve evitar propostas de sistemas conhecidos, mas muito diferentes do actual.
Círculos uninominais?
Pelos motivos apresentados, não é uma estratégia realista propor uma mudança do nosso sistema para círculos uninominais. É de facto um sistema melhor do que o nosso sistema (actual) do ponto de vista da maioria dum eleitorado. Promove a renovação interna dos partidos e não permite vencedores antecipados. Porém, é muito diferente do nosso: logo, é uma “aventura”. Pior, é altamente não-proporcional, o que prejudica algumas franjas dum eleitorado e seus partidos representantes. Do ponto de vista das reais hipóteses de vingar em Portugal é muito mau, pois requereria o delimitar de muitos círculos eleitorais. Até abriria outros debates, por exemplo sobre quantos círculos deve haver! Muito complicado. É evidente que as negociações entre bancadas parlamentares (e constituintes — pois é necessária uma revisão constitucional) eternizar-se-iam — muito conveniente para caciques partidários decididos a sabotar quaisquer propostas de os submeterem a um genuíno escrutínio democrático. Um tal processo de reforma não é exequível e acabaria por morrer.
Felizmente, há uma solução que preenche todos os requisitos: o sistema proporcional de listas abertas.
(Fonte: Wikipedia “open list”)
O sistema de listas abertas funciona em muitos países europeus, incluído Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça, etc.
Até o Brasil usa listas abertas: presentemente, o Brasil é um país mais democrático do que Portugal!
Se quisermos, o sistema de listas abertas pode ser exactamente igual ao nosso, excepto que a ordem de atribuição dos lugares de deputado é em função de quem tem mais votos. Consiste em meter as listas dos partidos nos boletins de voto e deixar que cada eleitor escolha um nome (i.e., voto nominal). A ordem pela qual os lugares do parlamento são atribuídos em função de quem tem mais votos. Se quisermos, todo o resto do actual sistema pode manter-se como actualmente, incluindo a proporcionalidade (entre votos e deputados) e o método de D’Hondt. Para isso, basta que um voto num candidato conte também como voto na lista a que esse candidato pertence. Deixa de haver “lugares elegíveis” e candidatos com a garantia prévia de terem um lugar. Ou seja, passa a haver escrutínio.
Resumo:
Basicamente, a modernização do sistema eleitoral de Portugal com mais hipóteses de vingar consiste em:
1) manter o sistema proporcional, com exactamente os mesmos círculos eleitorais, mas passando de listas fechadas para listas abertas.
O voto num candidato conta também como um voto na lista a que esse candidato pertence. Desta maneira, o método de D’Hondt pode continuar a ser usado exactamente como até agora. Em suma: o voto nominal destina-se a determinar a ordem das listas eleitorais; nada mais.
2) permitir a candidatura de listas de cidadãos independentes, não ligados aos partidos. Desta maneira, confere-se aos eleitores algum direito de negar o voto aos partidos.